Caboclo Marcelino 2015


SOMOS TODOS MARCELINOS
um pouco das muitas histórias



Por:
Casé Angatu
(Prof. da Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC / Ilhéus-Bahia)

Katu Tupinambá
(Prof. da Escola Estadual Indígena de Olivença - EEITO / Ilhéus-Bahia)



No dia 06 de novembro de 1936, o jornal Estado da Bahia, comemorando a prisão de Marcellino José Alves (Caboclo Marcelino – Índio de Olivença/Ilhéus/Bahia), dizia em sua manchete: “Era uma vez o Caboclo Marcellino”. Junto com ele também foram presos, conforme a foto a seguir tirada na cadeia de Itabuna e da esquerda para direita: Caboclinho (17 anos), Marcionilio, Marcellino, Pedro Pinto e Marcos Leite – veja foto abaixo.



Porém, ouvindo as falas dos anciões de Olivença percebe-se que a manchete daquele jornal errou em sua afirmação: Marcelino continua vivo até hoje nas memorias de vários moradores do território indígena Tupinambá. A figura de Marcelino serve como um dos símbolos da luta daquele povo indígena por suas terras. Uma memória guardada pelos antepassados e que grande parte da população de Ilhéus e sociedade brasileira não tem conhecimento.

De um lado, setores da imprensa e as elites cacaueiras local sempre apresentavam Marcelino como assassino, bandido e comunista. Aqueles que andavam com ele eram acusados de bando de criminosos. Segundo o Processo nº 356 do Tribunal Nacional de Segurança de 1936, julgando Marcelino, ele era “um malandro explorador da ingenuidade dos pacatos e genuínos descendentes de caboclos que vivem na zona de Olivença” (Auto de perguntas feitas a Marcellino Alves. Rio de Janeiro, 1936, Arquivo Nacional).

Algo que na atualidade não mudou tanto. Após a publicação no Diário Oficial da União do “Relatório Circunstanciado de Delimitação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença”, em 20 de abril de 2009, aumentou a situação de difamação, perseguição e repressão sobre os índios. Em 2010 foram presos o Cacique Babau e seus irmãos Índio Givaldo e Índia Glicélia. Em fevereiro de 2011 foi a vez da Cacique Maria Valdelice (Jamopoty). Em abril de 2011 foram presos: Cacique Gildo, Índio Mascarrado, Índio Del, Índio Maurício, Índio Nil. O Índio Del perdeu mesmo a perna após um tiro quando de sua prisão.

Ainda são constantes ações de reintegração de posse. Em agosto de 2012 Índios foram agredidos no Aeroporto de Ilhéus chamados de vagabundos. Acontecimentos semelhantes ocorreram em relação aos Pataxó Hã Hã Hãe e outros povos da região.

Parece mesmo que a situação não muda quando envolve os direitos indígenas. Pensamos que o conjunto destas ações reflete um quadro de arbitrariedade, intolerância, racismo e criminalização que sofrem os Tupinambá de Olivença. Acusam os Caciques, Lideranças e os Tupinambá de “crimes” como: “Esbulho Possessório; Formação de Quadrilha ou Bando; Exercício arbitrário das próprias razões; Furto; Sequestro”. Ainda é assim que os povos originários, ao lutarem por seus direitos, são tratados:

“Hoje ser um líder de um Povo é ser criminoso. Retomar nosso Território Tradicional visto o Estado não cumprir com seu compromisso virou esbulho possessório, agir coletivamente (marco tradicional de todos os povos indígenas) virou formação de quadrilha e lutar por nossos direitos negados pelo Estado Brasileiro virou exercício arbitrário das próprias razões… somos um povo, um povo guerreiro… temos nossa tradição e nossa forma diferenciada de ser e agir e queremos ser respeitados como tais” (http://www.indiosonline.org.br/novo/cacique-maria-valdelice-presa-injustamente/comment-page-1/#comment-15881).

Entretanto, para os anciões indígenas de Olivença, a história de Marcelino foi e é bem diferente. Contando os acontecimentos da época quando foi preso, os mais antigos narram que ele foi detido por causa da sua luta contra a invasão de Olivença por pessoas que tomavam as terras indígenas. No mesmo Processo nº 356 do Tribunal Nacional de Segurança de 1936 podemos ler que o objetivo dele era: “botar pra fora de Olivença os grandes de lá que lhes tinha tomado as suas terras e haveres (...) os quais, sem ser por intermédio de engenheiro, iam por conta própria invadindo as terras dos caboclos, tomando-as e botando-os para fora, perseguindo-os e escurraçando-os”.

Narram os anciões que entre as décadas de 1920 e 1930 houve um grande processo de “massacre frio em nossas terras”. Algo histórico quando nos referimos aos povos originários de Olivença. Aqui vale lembrar o massacre ocorrido no Rio Cururupe, comandado pelo governador geral da Bahia Mem de Sá, em 1559, que após as mortes estirou pela praia cerca de uma légua de corpos de Índios mortos. Este episódio ficou conhecido como “Batalha dos Nadadores”.

Segundo os anciões, a “Revolta de Marcelino”, nome dado ao que ocorreu, foi porque ele não queria que fosse construída a ponte sobre o Rio Cururupe. Os mais velhos contam que Marcelino era um grande líder Tupinambá, lutando para a não construção da ponte porque não queria que os Índios de Olivença tivessem contato com os brancos e que ocorressem mais invasões em terras indígenas. Aliás, ele mesmo possuiu suas terras e de seus parentes, invadidas.

Para percebermos como a fala dos anciões relacionam-se com a figura de Marcelino, O jornal Diário da Tarde, noticiou que “nas capitanias do estado e da república, consta que [Marcelino] andou pelos ministérios e secretarias, tratando muito a sério da defesa dos aborígines [...] clamando proteção para os donos verdadeiros da terra e mata virgens”

Novamente como dizem os anciões, a partir daí ele passou a ser muito perseguido pelos políticos e os coronéis de Ilhéus. Os anciões explicam que Marcelino era um “Índio bom, que ajudava a todos os parentes, mas mesmo assim era considerado um lampião, um criminoso já que ele passou a incomodar, organizando o movimento indígena e reivindicando os direitos”.

Os mais velhos contam ainda que Marcelino era único Índio que sabia ler e escrever e isso incomodava os poderosos da época. A luta de Marcelino era a necessidade de recuperar as terras perdidas e de expulsarem os novos ocupantes da antiga aldeia de Olivença. Por causa de sua luta passou a ser procurado pela policia que maltratava e torturava os parentes para "darem conta de Marcelino”. Os mais antigos falam assim sobre o que acontecia:

“Os policiais chegavam arrombando as portas, queimando suas okas e matando seus animais. Arrancavam as unhas, cortavam a língua, as orelhas... judiavam de todo jeito para dar conta de Marcelino. Muitos parentes tiveram que fugir para as matas para não morrerem".

Uns dos Índios que a polícia pegou foi Duca Liberato. Pedindo pra ele dar conta de Marcelino, calado ele ficou. Então a polícia lhe arrancou as unhas, as orelhas e disse que da próxima vez o mataria se ajudasse Marcelino.

Enquanto isso Marcelino fugia mata a dentro, comendo farinha seca e peixe. Os parentes ficavam preocupados sem saber seu paradeiro.

Marcelino se escondia na Serra das Trempes numa toca. Ali muito machucado e sem ter o que comer foi quando a polícia descobriu o seu paradeiro. Então armaram uma cilada e um dos tiros acertou a perna de um dos tenentes. A polícia então recuou. Mas Marcelino vendo o sofrimento dos parentes que eram maltratados e torturados pelos policias para que desse conta dele, então acabou se entregando. Passou um tempo preso e depois conseguiu fugir e se esconder de novo na Serra das Trempes.

Depois disso soube-se que o pegaram e deram o sumiço nele. Até hoje ninguém sabe seu paradeiro e o que fizeram com ele.

A luta de Marcelino, como narram os anciões, é hoje exemplo para os Tupinambá de Olivença: é a luta pela terra. Por isto falamos que SOMOS TODOS MARCELINOS.



Nossa homenagem às Palavras dos Anciões:

Dona Nivalda, Dona Angelina, Dona Lurdes, Dona Genilda, Dona Matilde, Dona Domingas, Dona Dinete, Dona Delfina, Dona Alice, Seu Alicio, Seu Pedro Braz





Para obter um cópia deste texto:
 Publicado originalmente em: Coletivo Indígena - Kariri-Xocó, Karapotó, Xokó, Pataxó, Pankararu, Pataxó Hãhãhãe, Tupinambá. Índios na visão dos índios: Memória. Olivença/Ilhéus: Thydêwá, 2012.) 

Este texto como o livro estão disponíveis em:  
http://www.thydewa.org/wp-content/uploads/2012/10/memoria.pdf





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